Manifesto Americanista

A História é uma ciência que trata dos homens e das mulheres, de suas culturas e sociedades, ao longo do tempo. Na História estão as mudanças e as permanências, as resistências e as revoluções. Mas desde que a História tornou-se  esta  ciência  social  do  homem  no  tempo,  vem  sofrendo  alguns  desvios, principalmente porque passamos a contar nossa história não mais a partir de nossos lugares no mundo, mas a partir de fora para dentro.

Na tentativa de entender nossa história, a História da América, como a história central, a nossa história comum, enquanto americanos, escrevemos este manifesto.

Em  primeiro  lugar,  entendemos  como  americanos  todos  aqueles  que nascem  na América.  Um  cubano  é  um  americano,  um  colombiano  é  um americano,  um  brasileiro  é  um  americano,  assim  como  um  estadunidense também  é  um  americano.  Na  verdade  os  estadunidenses,  devido  a  suas condições  históricas,  têm  reservado  para  si  a  condição  de  serem  os  únicos “americanos” do nosso continente. Enquanto americanistas temos o dever de acabar  com  esse  conceito;  americanos  somos  todos  nós  e  não  apenas  os estadunidenses.

Mas o nome “América” é uma herança europeia. Como americanistas não negamos este fato. Entretanto, escolhemos utilizar este termo para designar o nosso  continente  porque  é  um  termo  que  já  está  no  vocabulário  popular  e científico, e, por isso, deve ser considerado.

Antes  da  chegada  dos  europeus  aqui  não  existia  uma  “América”. Ao contrário,  antes  deles  chegarem  existiam  os  impérios  asteca  e  inca,  as  civilizações maia e olmeca; além de uma diversidade de povos espalhados por todo o continente. Decidimos nos apropriar do termo América para designar o continente não porque achamos que a herança europeia foi a “mais evoluída” e fez “bem” para os povos que aqui habitavam. Não. Nós americanistas adotamos o nome América porque este nome dá a noção de totalidade na diversidade que consiste nosso continente. Somos contra o eurocentrismo, assim como quaisquer outros tipos de “centrismo”.

1.A América em relação ao mundo

A América é um continente que ao longo da história tem características contraditórias.  Foi  berço  de  povos  e  civilizações  originais,  como  os  incas, astecas e maias, mas também foi o espaço da espoliação e colonização europeia; berço de uma Revolução Industrial, como a dos Estados Unidos, mas também de países  com  desenvolvimentos  desiguais,  dentro  mesmo  de  seus  próprios territórios.

Se no início dos tempos, a América vivia isolada, foi no século XV (de acordo com a contagem cristã dos séculos) que os europeus aqui chegaram e iniciou-se  uma nova etapa de nossa história. A partir de então a América se relacionou com o restante do mundo. Ao longo dos anos de colonização, a América foi a veia por onde vertia os metais que possibilitaram a acumulação primitiva  de  capital  na  Europa  e  que  posteriormente  deu  as  bases  para  a ascensão do capitalismo, o primeiro sistema a integrar o mundo; mas não de forma igualitária e sim numa relação de exploradores e explorados.

Já na fase imperialista do capitalismo, em fins do século XIX, a América viu emergir uma grande potência: os Estados Unidos. Assim como nos países europeus, o imperialismo americano dos Estados Unidos não tardou a abocanhar a América para tornar seu quintal: Cuba, Nicarágua, Porto Rico, Honduras, Guatemala (as “Repúblicas de Bananas” sob a “proteção” dos  yankees).  Ainda hoje o imperialismo estadunidense está latente, pois vigia o mundo,interferindo não apenas na América, mas também na Europa e na Ásia.

O capitalismo consolidou-se com a Revolução Industrial na Inglaterra e foi, sem dúvida na América, nos Estados Unidos, que o capitalismo ganhou um novo fôlego. Nos anos 1910 e 1920, a Europa, muito ocupada resolvendo suas guerras internas, que chamamos erroneamente de 1º guerra mundial, começava a perder  sua  hegemonia  no  sistema  capitalista.  O  capitalismo  estadunidense tornou-se o foco; mas o sistema capitalista mostrou suas contradições mais uma vez e em 1929 a América tornou-se o berço de uma crise mundial. “O país mais rico  do  mundo  se  tornou  uma  nação  abatida”  nas  palavras  do  sociólogo estadunidense  Leo  Huberman, explicando a  crise  que começou nos Estados Unidos....da América.

Após a segunda guerra mundial  (que na  verdade é  a  primeira guerra realmente  mundial),  os  Estados  Unidos  tornaram-se  o  núcleo  de  um  bloco capitalista. Os papeis se invertem: a Europa antes colonizadora, agora se rende ao  poderio  estadunidense.  Mas  a América  não  é  um  todo  homogêneo. As relações entre a América e o mundo tornavam-se mais fortes. Sob o comando dos Estados Unidos, tentando reforçar sua hegemonia capitalista na América, apoiaram ditaduras como no Peru, Brasil, Chile, Bolívia, Argentina, Uruguai e Paraguai,  contra  governos  nacionalistas-progressistas,  como  os  de  Vargas  e Jango no Brasil, Peron na Argentina e Haya de la Torre no Peru. Verifica-se, portanto, a ligação entre o nacionalismo e o ideal de justiça social, no tocante a América, muito distinto do nacionalismo europeu xenófobo e fascista.

Nunca houve tantas revoluções no mundo como no século XX. Boa parte delas americanas: revolução mexicana, revolução de 1930 no Brasil, revolução cubana,  revolução  nicaraguense  e  quem  sabe  revoluções  na  Venezuela  e Colômbia sob a bandeira do bolivarianismo.

Na América  tivemos  experiências  únicas  de  socialismo,  diversas  das europeias, africanas e asiáticas: a via chilena para o socialismo, a cubana, a nicaraguense. Socialismos e nacionalismos na América. Nunca houve tantas alternativas para se chegar a uma sociedade mais justa socialmente do que na América.

Como americanistas, não achamos que tudo que vem de fora não tem proveito. Ao contrário. Vamos usar conhecimentos de todos os continentes, sem dogmatismos e sectarismos, para nossas análises. Ser americanista não é negar o conhecimento produzido por toda a humanidade ao longo dos séculos, é, sim, saber que todo conhecimento tem uma história e serviu para algum momento e para  algum  fim.  Sendo  assim,  nós  americanistas  somos  críticos  e  não descansaremos  até  que  se  estabeleça  a  História  Social-Crítica  como  escola tipicamente americanista de produção historiográfica.

Entender o  mundo, suas  dinâmicas  e  processos  sociais, também  pode ajudar a compreender a América; pois nosso continente faz parte de um mundo maior e entendê-lo sob todas as óticas (desde que a partir da nossa história) é dever de todo americanista.

2. As bases do americanismo

Para  estudar,  analisar  e escrever nossa  história americanista, trazemos algumas  concepções  teóricas  (pois  teoria  e  prática  são  pressupostos indissociáveis).

Primeiramente entendemos que toda história tem um papel educacional e pedagógico.

 Somamos nossas vozes, criticamente, a de Danilo R. Streck, quando ele nos faz a seguinte provocação: “Existiria algo como a matriz de um pensamento pedagógico  latino-americano  que  desse  suporte  para  as  teorizações  que  – supostamente –deveriam responder às perguntas que emergem de nossas práticas educativas?”  Neste  sentido  acreditamos  que  a  pedagogia  histórico-crítica  é fundamental, por acreditarmos que é a mais adequada as nossas necessidades historicamente construídas.

Lutamos e lutaremos para que a história ensinada em nossas escolas seja a partir  da América;  temos  20  mil  anos  de  história! Antes  de  estudar  Egito, Mesopotâmia  e  Europa,  temos  que  partir  da  nossa  terra,  nosso  continente americano.  Repudiamos  toda  história  da América  que  se  inicia  como  um apêndice da história da Europa.

A América nunca foi América pré-colombiana. Sempre foi a América dos incas, dos maias, astecas, tupis, olmecas, aimarás, mapuches, guaranis e de outros povos que se desenvolveram por aqui. Chamar a América de América pré-colombiana é o mesmo que dizer que antes de Colombo e dos europeus não havia nada por aqui; que estávamos esperando Colombo e seus europeus chegar para iniciar nossa história. Por outro lado, a nossa América não se resume aos seus povos autóctones, somos também descendentes das nações colonizadoras, somos além disso afro-descendentes.

Propomos que as relações humanas, no caso específico da América, são resultado  tanto  de  condições  econômicas,  como  culturais  e  políticas.  Sendo assim, um americanista deve estar atento a todo tipo de produção e organização social no continente. Devemos nos aproximar, sem preconceitos, de leituras tanto  materialistas,  quanto  idealistas  de  nossa  trajetória.  Entendemos  o idealismo, como integrado a uma visão materialista histórica de fato dialética.

Qual a finalidade da educação escolar para os professores que não vêem o papel ativo das ideias no processo histórico?

Acreditamos que a história pode trazer muito do que precisamos para tornar o nosso continente um modelo nunca antes visto no mundo, um modelo de justiça social. Por isso ser americanista é denunciar os males socialmente construídos  que  assolam  as  pessoas  de  todos  os  países  da América  e  as possibilidades para superá-los.

3. Historiografia americana

Nós, americanistas, temos que estudar, pesquisar e levantar o que esta sendo produzido no conhecimento histórico sobre a América. Precisamos estar em contato com faculdades e universidades, escolas e movimentos sociais de toda a América. A colonialidade do conhecimento que nos é imposta é algo que vamos quebrar. Fomos colonizados brutalmente pela Europa, mas ainda hoje nossa mentalidade é de colonizados. Poucas pessoas sabem sobre a historiografia americana, cabe a nós americanistas trazer estas produções ao
público.

Sabemos sobre a historiografia francesa dos  Annales  de Marc Bloch e Braudel, inglesa da História Social de Hobsbawm e Thompson, alemã de Ranke e/ou Droysen. Nós, americanistas,não negamos a importância destas “escolas historiográficas”, mas temos  que nos debruçar sobre o que se produz aqui na América e para América. Quem melhor pode entender nossa realidade social, ou mesmo nossas peculiaridades históricas do que nós, americanos?

Há historiadores e professores americanos que sabem tudo sobre a Europa e  apenas  arranham  alguns  conhecimentos  sobre  a América.  É  nosso  dever, enquanto americanistas, dialogar com eles, sobre nossa história.

Quem que estuda história conhece a obra de Frederick Jackson Turner? Halperin Donghi? Leon Pomer? Manoel Bomfim? José Carlos Mariategui? José María Arguedas? Jorge Basadre? Luis Vitale? Ou mesmo de Gilberto Freire, Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha? Com certeza poucos conhecem os que  escrevem  sobre América  e  são  americanos.  Cabe  a  nós,  americanistas, conhecer e divulgar estes historiadores e escritores, mas sempre de forma crítica, entendendo que cada um escreve a história de acordo com a época e a realidade social em que vive ou pensa viver; e compreendendo a história produzida por eles, se compreende melhor suas épocas.

Mas  apenas  conhecer  e  contemplar  o  que  já  foi  escrito  não  é  nosso objetivo. Precisamos (re)escrever a nossa história. A História da América deve ser  escrita  com  toda  carga  crítica  que  precisamos  para  entender  nossas sociedades, do passado e do presente. Sendo assim, a historiografia americanista nos  serve  como  referencia;  buscamos  e  buscaremos  todos  os  autores  que escreveram e ainda escrevem sobre a América, não importa se são africanos, asiáticos ou europeus. Há muitos pontos que podemos aprender com outros países.

4. Americanismo X Americacentrismo

Ser  americanista  não  é  o  mesmo  que  ser  americacentrista.  Ou  seja, dialogamos  e  continuaremos  a  dialogar  com  todos  os  países  e  todos  os continentes; principalmente com aqueles que se encontram no que outrora foi chamado  de  “Terceiro  Mundo”:  países  independentes  de  qualquer  modelo político  e  econômico  estabelecido  por  forças  internas  ou  externas,  onde  as nossas  lutas  por  justiça  social  são  tratadas  como  demagogia,  paternalismo, populismo. Não cremos que a América é o centro do mundo e que todo o resto não presta e não tem sua validade; isto seria reproduzir a mente colonizada ao inverso, ou seja, se apropriar do lugar de colonizador. Apenas acreditamos que devemos valorizar muito mais a América como um todo, suas lutas e revoluções sociais, pois a história é feita por homens no tempo e no espaço.

Com efeito, todo americanista é contra qualquer tipo de preconceito, seja ele contra classes, gênero, grupo étnico/racial e cultural. Também somos contra qualquer tipo de xenofobia; acreditamos que sempre há algo a aprender sobre outras culturas, nações e povos.

O americanismo é construído de forma crítica, dialética, com opiniões contraditórias;  mas  sempre  mantendo  o  respeito  e  se  posicionando energicamente quando opiniões alheias são preconceituosas, ou desrespeitosas contra qualquer pessoa, e vão contra nosso ideal de justiça social.


JUNTE-SE A NÓS E VAMOS ESCREVER AS HISTÓRIAS DA AMÉRICA!

Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 
Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael Freitas. Graduado em História na FAPA, Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Tem interesse de pesquisa em História Social da América e Tendências Pedagógicas Contra-hegemônicas. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio 3w. 

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