Reflexões sobre o caráter histórico das esquerdas e das direitas na América Latina

Hoje em dia, muitos falam de partidos de esquerda e partidos de direita sem muitas vezes saber o que significam tais expressões. Esse assunto ganha urgência atualmente, quando muitas pessoas gritam nas ruas que o Partido dos Trabalhadores é de esquerda. Nada mais falso.

Os termos esquerda e direita surgiram na época da Revolução Francesa de 1789, quando foi reunida por ordem do rei uma grande assembleia chamada de Estados Gerais. Esta assembleia tinha representantes dos nobres, ricos e donos de terra; da burguesia, que eram os comerciantes e pequenos proprietários e pobres. E, por fim, havia os representantes da Igreja. Durante as reuniões dessa assembleia, cada uma dessas categorias tinha um lugar específico na hora de tomar seus lugares no imenso salão onde se realizavam essas reuniões. Aqui cabe um parêntese. Se a direta e a esquerda, enquanto conceitos, surgiram na Europa, por que nós, americanistas, os utilizamos? Nós não somos contra um conceito por originar-se na Europa, e julgamos necessária a análise de nossa história política por meio da contradição, direita e esquerda.

Imagine um grande salão retangular. No centro, em uma das pontas está o rei. Do lado esquerdo do rei estão os burgueses e alguns representantes dos pobres. Do lado direito estão os nobres e o clero. Os burgueses do lado esquerdo, também estavam divididos: os mais ricos sentavam num lugar mais baixo e os mais pobres num lugar mais elevado. O clima entre os dois lados começou a esquentar, pois cada lado defendia seu ponto de vista. Mas o que ficou marcado é que os membros da assembleia que ficavam do lado esquerdo tinham ideias mais populares (levando em conta a sua conjuntura); defendiam os trabalhadores pobres da cidade contra a exploração de alguns patrões, e também defendiam um grande reforma agrária em beneficio dos camponeses que viviam como servos. Por outro lado, não há como negar que estava a esquerda originária quem também defendia os interesses da burguesia, classe não dirigente, naquele momento. A esquerda da época lutava pela abolição da co-propriedade da terra e pela libertação do trabalhador de qualquer propriedade dos meios de produção, ou instrumentos de atividade produtiva. Alerta! Hoje, estes esquerdistas, poderiam aqui na América Latina, muito bem serem considerados de direita.


Assembléia Nacional Constituinte de 1789

Com o fim da Revolução de 1789, os ideais de igualdade social permaneceram na memória de muitos homens e mulheres que queriam mudanças na sociedade cada vez mais desigual. No século XIX, o movimento socialista, na Europa, ganhou bastante força. Em grande parte eles se basearam naqueles antigos membros da assembleia que sentavam a esquerda. Assim, ainda no século XIX, ficou designado que aqueles partidos que queriam grandes mudanças sociais de caráter reformista eram partidos de esquerda.

Mas por outro lado, uma burguesia cada vez mais rica e influente também se agrupava em partidos. Os ideais dessa burguesia rica estavam cada vez mais inclinados para manter a ordem e ter cada vez mais privilégios através do acúmulo de dinheiro. Essas ideias eram parecidas com a dos antigos nobres, que também queriam manter a ordem para continuar com a tranquilidade de ter dinheiro e terras enquanto os outros viviam na absoluta miséria. Afinal, as primeiras ações burguesas foram realizadas por nobres europeus em suas repúblicas feudais. Logo, os partidos que queriam manter a ordem, sem reformas para os mais pobres, ficaram sendo conhecidos como de direita. Um fato curioso é que essa direita sempre pregava um discurso liberal – mas de liberdade para seus negócios. A lógica dos ricos burgueses era que numa sociedade liberal todos tinham a liberdade de crescer e se tornarem ricos. Mas a grande crítica da esquerda era que não se podia crescer e ficar rico sem uma igualdade que possibilitasse todos crescerem e adquirir bens justamente.

Vimos que esquerda e direita tinham ideias diferentes quanto a sociedade. E na América, esquerda e direita têm suas peculiaridades também. Na Europa, a esquerda surge pela hegemonia burguesa. Marx, um dos ideólogos da esquerda, enaltecia a burguesia europeia, defendia que os burgueses mostraram o caminho da revolução. Na América, a hegemonia burguesa acontece muito lentamente, e isso tudo começa um século mais tarde que entre os europeus.

Esquerda e direita bem definidas, na América Latina, só podem ser identificadas em fins do século XIX e início do XX. Antes disso, haviam tendências políticas inspiradas na política europeia, como a divisão entre Liberais e Conservadores. Mas não se pode dizer que na América Latina liberais eram de esquerda e conservadores de direita. Às vezes conservadores defendiam um nacionalismo industrial para deter a dominação europeia; por outro lado, alguns liberais destruíam comunidades indígenas remanescentes, para adequá-las ao modelo europeu de propriedade privada. No Brasil monárquico, a Lei Áurea foi impulsionada por conservadores, que também tinham ideias criativas para uma reforma agrária.[1]

Pesquisa realizada pelo Datafolha.

Tanto a direita quanto a esquerda têm uma visão sobre o Estado. Mas e se a direita defendesse um Estado forte? E se a esquerda preferisse Estado mínimo? Quando a direita quer um Estado forte, que controle a economia, em beneficio dos que possuem dinheiro, isso se chama Fascismo. Quando a esquerda quer um Estado mínimo sem nenhuma interferência na vida social nem na produção, isto se chama Anarquismo. Mas há diversas variantes nestes termos e não podemos reduzi-los aos modelos europeus. A realidade histórica da América Latina é diferente. Os conceitos de esquerda e direita evoluíram desde a Revolução Burguesa na França. Há outras pautas nos debates entre a esquerda e a direita, como a remuneração para os trabalhadores em seus afazeres produtivos, a forma de propriedade da terra e outros meios de produção e reprodução da existência humana, e hoje em dia relações de gênero, de etnia, ou seja, falar sobre a esquerda e a direita é falar sobre todas as relações sociais possíveis, para além de instituições. Existem preocupações maiores hoje, do que havia naquela reunião entre os franceses revolucionários. Talvez por isso, hoje exista uma tendência de negação da existência de esquerda e direita. Consideramos esta visão, um erro.

Na Europa, a indústria e os proletários começaram a aparecer de forma mais intensa no início do século XIX. Na América Latina, uma industrialização mais intensa só vai ocorrer no século XX. Na Nossa América, por uma condição histórica que expressa as lutas de classes e a subordinação à Divisão Internacional do Trabalho, a esquerda nacionalista ganhou um papel de extrema importância. Basta para isso ver os radicais (da União Cívica Radical) e os peronistas (montoneros) na Argentina, os apristas no Peru, os cardenistas no México, os artiguistas no Uruguai e os trabalhistas no Brasil.

A direita por sua vez, sempre exerceu um papel conservador e reacionário na América Latina. E é possível dizer que a direita latino-americana está mais próxima do internacionalismo do que a esquerda (trabalhistas, anarquistas, trotskistas, comunistas), uma vez que alguns capitalistas latino-americanos são extremamente servis ao capital estrangeiro. Logo, não existe em nosso continente uma burguesia nacional. O capital é mundial. Com o avanço do neoliberalismo nos anos 1980/1990 e sua consolidação nos anos 2010 isto fica muito claro, pois foi através de diversas e interligadas ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul – que vigoraram nos anos 1960/1970.

Mas se o neoliberalismo na América Latina inicia a partir da década de 1980, por que relacionar com as ditaduras que sofremos? Simples. O que é o neoliberalismo se não uma nova forma de desnacionalização dos nossos Estados Nacionais? Após uma fase chamada erroneamente de populista, aonde o Estado ganha protagonismo nas economias, o capital estrangeiro e uma nova forma de dependência adentra o nosso subcontinente, ganhando destaque o papel desempenhado pelas citadas ditaduras. Não militares, mas civis e militares. Hoje, em uma formal democracia, até mesmo partidos que detêm o poder, e se dizem de esquerda, mantém (e muitas vezes, como no caso brasileiro, apoia) o controle financeiro dos organismos internacionais.

As esquerdas latino-americanas quando ocuparam o poder sempre se pautaram por reformas sociais que assegurassem, dentre outras coisas, a reforma agrária, anti-imperialismo e democracia social. Há, entretanto, alguns temas que perpassam essas esferas, sem, contudo, negá-los, como por exemplo, melhores condições de vida para os trabalhadores, seguridade social e até mesmo o nacionalismo (num sentido popular onde o Estado tenha uma forte influência na economia). Afinal, como dizia o intelectual militante Nelson Werneck Sodré, só é verdadeiramente “nacional, o que é popular”.

Mas há que se considerar que houve vezes aonde setores da esquerda (notadamente os comunistas) tiveram uma leitura equivocada da realidade e por isso acabaram por dar seu apoio a setores conservadores, da direita, em alguns casos. Por exemplo, o apoio do Partido Socialista Popular ao lacaio do imperialismo estadunidense Fulgêncio Batista em Cuba. Somente após o triunfo da Revolução de 1959 que outro partido comunista se organizou na ilha e deu seu apoio ao regime. E o caso cubano não é o único. Na Bolívia, os comunistas apoiaram a direitista e conservadora União Republicana Socialista (que de socialista tinha só o nome, pois agregava os setores da oligarquia vinculados a um catolicismo conservador) contra a esquerda, representada pelo Movimento Nacionalista Revolucionário, de Paz Estenssoro, nas eleições de 1947. A URP sagrou-se vencedora no pleito, e um período de repressão iniciou-se até o início da Revolução de 1952. Outro exemplo aconteceu na Nicarágua, quando na década de 1940 Anastasio Somoza Garcia obteve apoio do Partido Comunista daquele país. No Brasil, Luis Carlos Prestes dissidiu do PCB, por considerá-lo reformista de direita ao apoiar governo que continuou a ditadura civil militar sob disfarce democrático. Hoje, o PCdoB apóia o governo federal que retira direitos dos trabalhadores, aumentando a intensidade de trabalho e criando uma massa de proletários endividados. Não houve uma guinada a direita com Dilma e sim uma continuidade do projeto neoliberal de FHC. Em 2010, por exemplo, Lula permitiu a redução do horário de intervalo e almoço, pela metade.

Não há conceituações definitivas para esquerda e direita. Uma mesma classe social ou ideologia pode provocar avanços ou retrocessos, dependendo de seu lugar na História. 

Sem dúvida é uma questão ampla e complexa diferenciar ambos. Arriscamos sintetizar da seguinte forma: o ponto nevrálgico é ter a democracia como ponto de partida. A pauta esquerdista sempre foi o avanço democrático, com sua maior arma que invariavelmente foi a verdade. A pauta direitista sempre foi como limitar o aprofundamento da democracia, por meio do obscurantismo ou ocultamento da verdade. Não é a toa que a direita muitas vezes esteve lado a lado com a censura. A censura é sempre um elemento de direita, mesmo quando praticada por governos nacionalistas ou socialistas.

É também importante, que a esquerda autêntica deixe de lado o discurso pós-moderno da fragmentação. Sabemos que questões de gênero, culturais e étnicas são importantes, mas não devem ser deslocadas do conteúdo classista presente na sociedade, devem ser analisadas em conjunto. Intelectuais clássicos de nosso americanismo já demonstraram que as questões de etnia ou de raça devem sempre serem relacionadas com as lutas de classes, bem como Karl Marx as relacionava com as opressões das mulheres pelos homens. Logo, a economia deve estar inserida em todas as pautas da esquerda, logicamente relacionando-se com a política e a cultura, pois nossa realidade sempre esteve, como estará, em movimento. Sendo a dialética a única certeza da vida.


Notas:

[1] Ver Jobim, Leopoldo. Reforma agrária no Brasil Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
[2] ZIMMERMANN, Matilde. A revolução nicaraguense. São Paulo, UNESP, 2006, p. 33.
[3] Ver http://www.granadeiro.adv.br/template/template_clipping.php?Id=6102 e http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981­77462013000100010&script=sci_arttext



Sobre o Autor:
Fábio Melo
Fábio Melo. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Pesquisa sobre História Social da América e Educação na América (América Latina e Estados Unidos). Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na rádio La Integracion. Tem diversos textos escritos sobre educação, cultura e política. 

Sobre o Autor:
Rafael Freitas
Rafael da Silva Freitas: Nasceu no dia 29 de dezembro de 1982 em Santa Maria, RS. Historiador. Membro Permanente e fundador do Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata. Produtor e radialista do programa "História em Pauta" na web rádio La Integracion. Colunista no Jornal de Viamão.

5 comentários:

  1. Fábio, Prestes não divergiu do partido em 1980, ele ficou em minoria e preferiu sair, mas foi praticamente expulso e vítima de um golpe dos eurocomunistas como Roberto Freire. Sobre o caso boliviano e nicaraguense não sei, mas sei que na Nicarágua o governo sandinista também prendia dissidentes de esquerda, os seguidores de Enver Hoxha que queriam fazer milícias para distribuir a terra foram os primeiros presos políticos. No caso cubano, o PCC só fez seu primeiro congresso em 1975, realmente. Antes disso, o que funcionou foi uma frente.
    Abs do Lúcio Jr.

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  2. O PC do B não é comunista e sim revisionista da pior espécie hoje em dia.

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  3. Gostei do texto, mas vejo várias questões. Penso que o sentido original foi superado pela história que lhe sobreveio. Todas as discussões anarquistas e socialistas do século XIX e a progressiva hegemonia marxista no século XX deslocaram o eixo da discussão e o próprio sentido das palavras que deixaram de ser "posicionais" e passaram a fazer referência a um conteúdo social e econômico. A partir do sucesso das teses de Marx e Engels, ser de esquerda significava lutar pelo fim da propriedade privada dos meios de produção e "do estado burguês", ou seja, toda a superestrutura que o legitima e sustenta. Ser de direita passa a ser defender o estado liberal, o direito à propriedade dos modos de produção e da democracia representativa. É claro que esta divisão é insuficiente, mas acredito que seja uma base. Quando decidi iniciar o blog Questões Relevantes, em 2013, o segundo artigo que escrevi foi exatamente sobre esta questão. Se tiverem tempo, leiam. Segue o link para o artigo ESQUERDA x DIREITA: A TEORIA DAS GAVETAS OU COMO NÃO CHAMAR URUBU DE “MEU LÔRO”.
    http://wp.me/p4alqY-a

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Caros colegas de debates, Lucio e Paulo. Grato pelas participações de ambos. A Lucio fico agradecido pelos acréscimos. Sobre o comentário de Paulo e o seu texto em seu blog...
    Em nosso texto achamos desnecessários os rótulos de extrema esquerda, extrema direita e centro. Para nós todo avanço democrático significa avanço pela esquerda, mesmo com suas limitações que a história vivida impõe. Logo há pessoas de esquerda que não são marxistas. Não concordamos em reduzir a esquerda ao marxismo, como tu Paulo deste a entender em tua participação acima (aqui: “A partir do sucesso das teses de Marx e Engels, ser de esquerda significava lutar pelo fim da propriedade privada dos meios de produção e "do estado burguês", ou seja, toda a superestrutura que o legitima e sustenta.”). Mesmo a Internacional Comunista discutia formas de melhorar as condições de vida dos trabalhadores do mundo, basta ver nosso História em Pauta sobre a Carne Argentina. Lá os comunistas debatiam sobre a dieta dos trabalhadores, indo para muito além de apenas os pontos colocados por ti, inclusive em teu texto aonde defines palavras chave para extrema esquerda e esquerda. Fiquei surpreso ao reparar que no texto no teu blog se fala e se critica às vezes duramente o marxismo e os marxistas, sem mostrar qualquer leitura ou referência aos livros de Marx, por exemplo. Notei que tens maior desenvoltura quando analisas intelectuais liberais. Fiquei em dúvida para saber quais tuas fontes para averiguar tais informações subjetivas de muitas pessoas que tu nem desconfia ao menos os seus nomes. Mas podemos ficar em João Amazonas, que de dentro do Parlamento, quando aperfeiçoava a nossa legislação trabalhista estava agindo a esquerda com seus erros é verdade, como quando apoiou a candidatura de Lula a presidência. Ele foi desonesto? Me refiro a este trecho: “Apesar de tudo que foi demonstrado até aqui, frequentemente a esquerda (não a extrema esquerda) sequestra alguns destes conceitos que definem a social-democracia contemporânea e os usa como iscas para atrair simpatizantes, mas não o fazem por convicção e sim como estratégia de luta. E o pior (para a clareza no debate político) é que muita gente morde a isca.” Quando falas em esquerda, te referes a pessoas e são muitas, que ao teu ver e de modo a científico, para dizer o mínimo, agem sem convicção.
    O texto é útil para debates, mas faltou relacionar as gavetas. Por outro lado, o mérito foi assumir que existe sim direita e esquerda. No lugar de duas gavetas, são cinco, mas o norte continua esquerda? Direita?. Outro mérito e colocar de modo claro o teu posicionamento político, na nossa gaveta, cabes no lado direito. Na tua no centro. Abraço.

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